Sal comum versus sal gourmet
Por José Carlos Souto
As redes sociais, pelo que me dizem, estão em polvorosa por causa do sal. Não as questões realmente relevantes, como a base científica das orientações quanto à restrição se sal (sobre as quais já escrevi aqui – e recomendo a leitura deste artigo). Não, a questão são as variedades de sal gourmet, tais como sal rosa do Himalaia. Afirmações quanto às suas propriedades circulam pela rede, coisas como:
Está localizado aos pés do Himalaia, região que há milhões de anos foi banhada pelo mar. Considerado o mais antigo e puro dos sais marinhos, fica depositado a centenas de metros de profundidade. Tem quase metade de sódio encontrado no sal comum e é muito rico em minerais (são mais de 80), tais como cálcio, magnésio, potássio, cobre e ferro.”
Por causa desses compostos, os cristais ganham um tom rosado e um sabor com toque metálico agradável e suave. Pode ser empregado em carnes, aves e peixes, além de saladas e legumes. Também cai muito bem na finalização e decoração de alguns pratos. Em 1g de sal Rosa do Himalaia há 230mg de sódio.”
Vamos colocar, por um momento, nosso chapéu do ceticismo, e vamos pensar um pouco. Mais de 80 minerais (na verdade, o site de onde isso foi tirado lista 84 ELEMENTOS)… A tabela periódica dos elementos contém 92 elementos de ocorrência natural. Desses, alguns são gases nobres, outros 11 são radioativos, e vários são tóxicos, como arsênio, chumbo e mercúrio, por exemplo. Façam as contas…
Metade do sódio do sal comum? Só? Vamos verificar essa informação com alguma referência bibliográfica aceitável?
O único estudo peer reviewed que eu encontrei sobre o assunto (no blog Authority Nutrition), mostra algo bem diferente:
Observe que a quantidade de sódio do sal do Himalaia (36,8% – o resto é cloro e alguns traços de outros elementos, e não pó de fada) é virtualmente o mesmo do que o sal de mesa (39,1%).
Mesmo o site que todos referenciam para afirmar que o sal do Himalaia contém 84 elementos (e que não é tão confiável, por ser o site de um vendedor do produto, e não ser peer reviewed), mostra que 98% do peso do sal do Himalaia é cloreto de sódio. Ou seja, sal é sal. E o do Himalaia é 98% sal.
Mas, você dirá, estes 2% podem fazer toda a diferença. Será?
Vamos analisar de forma lógica a importância desses 2 a 3%, utilizando aritmética do ensino fundamental (regra de três).
Elementos essenciais.
A química orgânica, como sabemos, baseia-se em Carbono, Oxigênio, Hidrogênio e Nitrogênio, que são necessários em grande quantidade. Nada menos do que 99% da massa das células é composta por esses 4 elementos. Mas há uma série de outros elementos que também são essenciais. Alguns precisam ser ingeridos em maior quantidade (Sódio, Cálcio, Sódio, Potássio, Fósforo, Ferro, Enxofre). Os outros são necessários em pequenas quantidades, participando de reações enzimáticas. Embora a tabela periódica contenha 92 elementos de ocorrência natural, apenas cerca de 20 são essenciais.
Na figura abaixo, do livro-texto de bioquímica Lehninger, estão marcados todos os elementos essenciais à vida:
Então, como vemos, uma minoria dos elementos da tabela periódica nos interessam. A maioria dos demais são venenosos e indesejáveis. Dizer que o sal do Himalaia é bom porque contém 84 elementos é, portanto, um argumento de marketing, focado na ignorância, algo como “o sal que tiver mais quadradinhos na tabela periódica vence”. Repito: a maioria do que não é essencial é tóxico, e boa parte são classificados como metais pesados (ver, acima).
Na tabela acima, os elementos em marrom precisam ser consumidos em quantidades medidas em gramas. Portanto, na comida, e não em condimentos como o sal, no qual têm participação irrisória.
Já os elementos em amarelo são minerais necessários em pequenas quantidades. Como a quantidade de sal que as pessoas consomem diariamente é de apenas alguns poucos gramas, e como apenas 2 a 3% dos sais gourmets são compostos por estes outros elementos, vamos fazer o seguinte exercício: abaixo, construí uma tabela, com microelementos essenciais, a quantidade mínima recomendada por dia (RDA), e a quantidade de sal rosa do himalaia (baseado no site que todos referenciam) que seria necessária para atingir a quantidade mínima de cada elemento:
MINERAL Quantidade mínima Quantidade necessária
recomendada de sal rosa
Cálcio ………………… 1000 mg ………………… 246 gramas
Cromo ……………….. 30 mcg ………………… 600 gramas
Ferro …………………. 08 mg ………………… 205 gramas
Magnésio …………….. 420 mg …………………. 2,625 QUILOS
Manganês …………… 2,3 mg ………………….. 8,518 QUILOS
Molibdênio …………… 45 mcg …………………. 166 gramas
Potássio ……………… 4,7 g ………………………. 1,343 QUILOS
Selênio ………………. 55 mcg ……………………. 1,1 QUILO
Zinco …………………. 11 mg …………………….. 4,622 QUILOS
Assim, por exemplo, argumentar que o sal do Himalaia é melhor do que o sal comum pois contém magnésio ignora o fato de que seria necessário consumir mais de 2 quilos e meio de sal do Himalaia por dia apenas para atingir a quantidade mínima necessária de magnésio. Por quê? Porque a concentração de magnésio no sal do Himalaia é de 0,16g/Kg de sal. Precisamos de 0,420g por dia. Faça a conta você mesmo – é só uma regra de três.
Quanto à maioria dos demais sessenta e poucos elementos (incluindo plutônio e arsênio), a sorte é que estão presentes em quantidades ínfimas também. A mesma coisa que impede o sal rosa de ser tóxico, o impede de ser especialmente benéfico: a extrema diluição de tudo o que não é cloreto de sódio.
Quer dizer que não há nenhuma vantagem do sal rosa? Ou do sal marinho? Ou da flor de sal?
Bem primeiramente, é importante saber o seguinte: o sal pode vir de minas de sal (caso do sal do Himalaia) ou do mar. A totalidade do sal do Brasil é produzida por evaporação de água do mar. Assim, por definição, TODO o sal brasileiro é sal marinho. Sim, todo.
O sal refinado passa por processos de purificação (lavagem, centrifugação, cristalização), e contém 99% de cloreto de sódio (já vimos que o sal do Himalaia é 98% NaCl também). A grande diferença, no fundo, é que o sal refinado é iodado por lei (deve conter 20 a 60 mg de iodo por Kg de sal), e costuma conter aditivos antiumectantes para deixar o sal “soltinho” na embalagem.
Uma das marcas mais conhecidas de sal refinado de mesa, por exemplo, contém:
Sal Refinado Extra, Iodato de Potássio. Antiumectantes: Ferrocianeto de Sódio e Dióxido de Silício.
E o que são essas coisas? Vejamos:
Dióxido de silício é uma substância que não é absorvida, e não apresenta toxicidade. Ferrocianeto de sódio, bem, eu preferiria não comer isso todos os dias (embora seja considerado seguro nas quantidades utilizadas no sal). Tenho certo preconceito com coisas contendo cianeto no nome.
Assim, o grande diferencial dos sais gourmet não é a presença de picogramas de molibdênio ou manganês (que, nessas quantidades, são absolutamente irrelevantes, como matematicamente demonstrado acima), e sim o fato de não serem altamente processados mediante refino e acréscimo de aditivos questionáveis. Por outro lado, também não são iodados, o que pode ser um problema para pessoas que não consomem frutos do mar com frequência.
Então, para quem prefere fugir dos antiumectantes de nome esquisito, mas não pretende pagar uma fortuna por quantidades infinitesimais de pó de fada com propriedades mágicas, uma alternativa interessante é o sal integral moído e iodado (que, como TODO o sal fabricado no país, é sal marinho), que pode ser encontrado nas casas do ramo. Ele entope os furinhos do saleiro, mas não tem nada além de sal em sua composição.
BONUS – muito flúor?
Também fui informado pelos leitores que circula na redes sociais um boato de que o sal do Himalaia contém quantidades elevadas e tóxicas de flúor.
É muito difícil encontrar uma fonte fidedigna da concentração de flúor no sal do Himalaia. A maior parte das fontes são sites de teorias de conspiração – a antítese do que seria uma referência bibliográfica aceitável. O mais próximo que encontrei foi uma tabela que refere 231 mg de flúor por Kg de sal do Himalaia. Eu achei o valor um pouco alto, mas Ok, vamos fazer a conta:
Flúor –> quantidade mínima (indicada para prevenção de cáries) por dia: 4 mg;
Se 1000 g de sal contiverem 231 mg, seria necessário consumir 17g de sal do Himalaia para atingir os 4 mg de flúor.
A quantidade máxima diária não deve ultrapassar 10 mg.
Para atingir 10 mg de flúor, seria necessário consumir 43g de sal do Himalaia por dia.
Veja bem, eu DUVIDO que o valor real seja 231 mg por Kg. Não achei fontes independentes confirmando esse valor. Comparando com outros microelementos, creio que houve confusão, provavelmente deve ser 1000 vezes menos (0,231 partes por milhão). Mas, MESMO que este valor fosse verdadeiro, ainda assim seria IMPOSSÍVEL produzir fluorose pelo consumo de sal do Himalaia.
O brasileiro consome, em média, 12g de sal por dia. Bem verdade que uma boa parte desse sal está contido nos próprios alimentos e, definitivamente, não vem do Himalaia. Mas suponhamos, à guisa de argumentação, que uma pessoa fosse consumir 12g de sal do himalaia todos os dias, e que este sal contivesse, de fato, 231 mg de flúor por quilo. Quanto flúor estaria consumindo? Fazendo uma rápida regra de três: 12g de sal rosa = 2,7 mg de flúor. Isso é abaixo na necessidade diária, e muito abaixo da dose tóxica (10 mg).
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Moral de toda essa história? É preciso usar o senso crítico.
Não existe superalimento – já escrevi sobre isso. A ideia de que alimentos exóticos e caros terão propriedades curativas e emagrecedoras únicas é pensamento mágico, e deve sempre levantar suspeitas.
Uma dieta low carb páleo pode ser feita com os vegetais da feira e o açougue da esquina, sem nunca passar perto de uma loja de suplementos. E pode ser temperada com o sal do oceano que banha o nosso litoral – ele não é melhor nem pior do que o sal minerado em terras distantes; é 98 a 99% NaCl, como todo o sal.
Saiba mais sobre nossa filosofia clicando aqui.
Referências:
http://www.lowcarb-paleo.com.br/2015/12/sal-comum-versus-sal-gourmet.html
http://www.lowcarb-paleo.com.br/2013/05/o-sal.html