O desejo incontrolável por pizza e sorvete pode ser seu corpo gritando por socorro. Será que você é um dependente?
Por Paul John Scott e Thaís Cavalheiro
A edição de setembro da GQ traz grátis um suplemento especial de 66 páginas sobre saúde e bem-estar. Uma de nossas matérias especiais na edição pergunta se “é possível os carboidratos viciarem mais do que cocaína?”. A resposta é assustadora. Leia…
Estou em um estabelecimento que vende drogas. Observo uma fila de pessoas no balcão, comprando livremente uma mercadoria que, para algumas, poderá se transformar (se ainda não se transformou) em um vício capaz de arruinar sua vida. Quem sabe você esteja no mesmo caminho. O problema nem sempre é evidente: nada que se compare ao massacre
associado à cocaína ou ao álcool. É um vício que demora a se revelar, mas com percurso igualmente traiçoeiro. O lugar é uma padaria. E, certamente, aqui vende-se saladas e produtos light. Mas por que a oferta de bolos e docinhos supera a de alimentos saudáveis? Porque os carboidratos – assim como a cocaína – dão barato. E esse barato pode levar à fissura quando se fica muito tempo sem uma “dose”. Só que, diferentemente da cocaína, o consumo de carboidratos faz mais do que estabelecer novas conexões no sistema neurológico: o corpo sofre uma espécie de curto-circuito. Nosso metabolismo normalmente armazena energia para ser usada como combustível. Só que calorias não queimadas viram estoque de gordura. Quando a fome bate, você não fica doido para comer o que estiver à mão, mas deseja as mesmas besteiras cheias de calorias que o levaram à dependência. Pense nesse efeito como o de uma droga.
Em defesa dos carboidratos: a recomendação internacional defende que esses nutrientes componham 30% das refeições principais. Sob forma de amidos e açúcares, estão em pães, cereais, massas, frutas, doces, sucos e cerveja – basicamente qualquer coisa que não seja proteína ou gordura. “Mas você pode passar a vida toda sem ingerir um único carboidrato – exceto aquele do leite materno ou da diminuta quantidade da carne – e provavelmente viverá bem”, afirma Gary Taubes, autor do livro Boas Calorias, Más Calorias (Good Calories, Bad Calories).
Dormindo, o organismo queima gordura
Açúcar e amido fornecem energia em forma de glicose, fonte para as células vermelhas do sangue – e também a preferida pelo cérebro. Na falta de glicose, o organismo queima gordura para gerar energia. É o que acontece enquanto você dorme, sem comer por oito horas. “O cérebro necessita de carboidratos como combustível”, diz Taubes (autor do livro, Por que Engordamos (Why We Get Fat). “Mas o corpo é perfeitamente capaz de buscar energia nas proteínas, nos vegetais e na gordura animal.” Como escreveram doutores da Universidade Harvard no Journal of the American Medical Association, “carboidratos são nutrientes absolutamente desnecessários para o ser humano”.
Dependência
O problema não está exatamente nos carboidratos, mas na dependência que estabelecemos deles. Ao ativar áreas do cérebro ligadas ao prazer, eles derrubam nossas defesas contra a comilança desenfreada e nos deixam gordos e mal nutridos. Quanto mais comemos alimentos ricos em carboidratos, mais queremos comer – o processo é semelhante ao das
drogas viciantes. Em 2007, um experimento feito com ratos na Universidade de Bordeaux, na França, mostrou que, quando os bichos podiam escolher entre cocaína intravenosa e um adoçante, 94% preferiram o substituto do açúcar. A conclusão foi a de que a doçura intensa funciona, para os receptores cerebrais, como um estímulo maior do que o da cocaína, de tal forma que, ao chegar ao centro de recompensa cerebral, suprime os mecanismos de autocontrole, levando à dependência.
Sintomas de abstinência
Nicole Avena, especialista em neurociência comportamental da Universidade da Flórida (EUA) que se dedicou à análise de cobaias alimentadas com açúcar, afirma que o consumo de doces leva ao desejo compulsivo e a sintomas de abstinência. Isso porque tanto carboidrato como cocaína e anfetamina envolvem os mesmos circuitos cerebrais sob o comando do sistema nervoso central. Alimentos altamente calóricos injetam no sangue dopamina, neurotransmissor que, ao atingir o centro de recompensa do cérebro, gera um efeito imediato de bem-estar e felicidade – o mesmo que causa a dependência química. Tudo o que dá prazer, guloseima ou droga, aciona uma rede complexa de neurônios que, ao ser ativada, reconhece a sensação agradável, cristaliza-a na memória e provoca a repetição do gesto.
Como a natureza é sábia, a sensação de prazer associada à macarronada ou ao sorvete é a arma do cérebro para garantir que não falte energia para o corpo funcionar. Assim que você põe na boca um alimento calórico, começa a produção da dopamina. “Esse mecanismo é fundamental para nossa sobrevivência”, explica Paulo Jannuzzi Cunha, neuropsicólogo do Laboratório de Investigações Médicas do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). “O consumo de carboidratos provoca um prazer intenso que vai embora rápido, o que leva ao desejo de ingerir aquilo de novo para ter de volta a satisfação perdida.”
Ação da dopamina
“Brigadeiro e pão francês, por exemplo, ativam o centro de recompensa de maneira tão rápida e intensa que a mensagem de saciedade é simplesmente ignorada pelo cérebro”, continua Cunha, especialista em comportamentos impulsivos. Resultado: você continua a se empanturrar. E, assim como acontece com dependentes de drogas, o córtex pré-frontal (centro moral do cérebro) não consegue se sobrepor à ação da dopamina. Assim, o que prevalece é a memória da satisfação proporcionada pela guloseima, na região do hipocampo. E aí tudo o que você quer é, mais uma vez, cair de boca nos bombons e nos sonhos de padaria para ter bem-estar. “Não é o caso de declarar guerra ao carboidrato”, enfatiza o neurologista. “O importante é controlar o impulso, adiar a gratificação e evitar o imediatismo.”
Receptor prejudicado
Se você adotar uma dieta pobre nesse nutriente, seu corpo vai queimar estoques de gordura. Já comer carboidratos em grande quantidade (principalmente os refinados, como açúcar, farinha branca e refrigerantes) obriga o pâncreas a liberar cada vez mais insulina. Esse hormônio, como uma chave que se encaixa com perfeição na fechadura, se liga a seu receptor localizado na membrana da célula e “abre a porta” para a passagem da glicose. A ingestão excessiva de carboidratos prejudica o funcionamento do receptor, pois em altas doses a glicose desequilibra a fabricação de insulina e modifica a própria membrana das células, que passam a negar a entrada do açúcar. Ele, então, sobra na circulação e acaba armazenado em forma de gordura.
Pré-diabetes
Para piorar, o tecido adiposo favorece a resistência à insulina – o chamado pré-diabetes. Em altas doses, esse hormônio não apenas predispõe o corpo a estocar gordura, mas dificulta sua queima e aciona uma fome de leão. Para saciá-la, você não come qualquer coisa, mas algo rico em…açúcar e farinha. Os cartéis de droga apenas sonham com um narcótico que crie um ciclo de dependência tão poderoso (e pernicioso) quanto o dos pós brancos que guardamos na despensa. Este ano, o americano Robert Lustig, endocrinologista da Universidade da Califórnia (EUA), foi capa da revista do New York Times defendendo restrições à venda de doces e refrigerantes, como acontece com álcool e cigarros, por causarem igual dependência. Lustig foi além ao afirmar que, como a frutose, o açúcar das frutas, produz um efeito nocivo sobre o fígado comparável ao das bebidas alcoólicas (por causa do mesmo tipo de metabolização), deveríamos limitar o consumo de sucos. Para ele, as frutas são saudáveis por conterem fibras, mas seu suco, nem tanto.
Índice glicêmico
A nutricionista brasileira Anna Castilho, especializada em reeducação alimentar, lembra que carboidratos têm papel importante na recuperação e no crescimento muscular. A insulina liberada por pães e massas transporta os aminoácidos (“tijolos” de proteínas) para as células musculares, melhorando o desempenho. Em vez de banir os carboidratos, diz Anna, fique de olho no índice glicêmico (IG), medida que indica a velocidade com que a glicose é liberada no sangue assim que se ingere um alimento. Quanto mais alto o IG (caso de biscoitos, arroz e pão brancos), mais rápidas a digestão, absorção e sensação de fome. Alimentos com baixo IG (como cereais, pão e arroz integrais, verduras e legumes), ao contrário, retardam o esvaziamento gástrico e prolongam a saciedade.
É possível livrar-se da dependência dos carboidratos? Segundo Gary Taubes, não nos resta alternativa a não ser tentar. “Há evidências de que a fissura acaba depois de um tempo, mas é difícil precisar se isso acontece em semanas ou anos”, afirma. O assustador é que, como um viciado em recuperação, você provavelmente nunca estará 100% curado e ainda correrá o risco de recaídas.
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