Em 2017, o Dr. Souto escreveu uma postagem em seu blog por causa de uma notícia de que a Assembleia Legislativa de São Paulo havia aprovado projeto de lei que proibia a venda e o fornecimento de carne às segundas-feiras em restaurantes, bares, lanchonetes e refeitórios localizados dentro de órgãos públicos do Estado. Felizmente, o projeto foi vetado pelo então governador Geraldo Alckmin. A postagem poder ser conferida aqui.
Post original de
Em sua justificativa, o autor do projeto de lei, entre outras coisas, alegava que o objetivo era chamar a atenção para o “as consequências do consumo de carne e de seus derivados, relacionando tal questão diretamente (…) à crise ambiental, ao aquecimento global, à perda de biodiversidade, às mudanças climáticas (…)”.
Quatro anos depois, essa narrativa está-se tornando hegemônica. Virou senso comum. Artigos jornalísticos começam com “é SABIDO que o consumo de carne contribui com a escassez de água e com o aquecimento global”. Consensos à parte, eu discordava em 2017, e continuo discordando. De lá para cá, tivemos a publicação do EXCELENTE livro Sacred Cow, de Robb Wolf e Diana Rogers:
O livro aborda, com todas as referências bibliográficas, as três esferas do consumo de carne: saúde humana, impacto ambiental, e aspectos ético-filosóficos. Vale MUITO a leitura. Mas, infelizmente, não está traduzido para o português.
Recentemente, vi um pequeno vídeo-documentário, com cerca de 20 minutos de duração, que faz um excelente resumo, fácil de entender, sobre as mais comuns falácias científicas que se costuma alegar sobre o impacto ambiental do consumo de carne e sobre os supostos benefícios de cessar seu consumo.
A Sari Fontana e eu decidimos fazer um episódio do podcast Comida Sem Filtro, baseado neste filme, para difundir esse assunto para o público de língua portuguesa:
Em seguida, a colanaCrisR fez a tradução e a rohespanholo colocou as legendas (obrigado, meninas, pela presteza e pela gentileza!), de modo que, agora, vocês podem assistir ao vídeo legendado (clique aqui se não estiver aparecendo em seu navegador)!
Por fim, para fazer o episódio do podcast, extraímos os principais argumentos E AS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. Para quem prefere as informações em forma de texto, seguem os principais tópicos:
→ Água
94% da água necessária para produzir carne é “água verde”, ou seja, água da chuva (A Global Assessment of the Water Footprint of Farm Animal Products | SpringerLink)
Esmagadora maioria dessa água toda estará presente na comida dos animais (capim, feno); essa água não desaparece do planeta, e não fica aprisionada na carne – ela é urinada poucas horas depois e volta ao solo. Deveríamos derrubar a floresta amazônica por causa de toda a água que as árvores consomem? É absurdo, pois essa água evapora e volta na forma de chuva. O mesmo ocorre com a água consumida pelo gado.
→ O problema real é a água fresca que poderia ser usada para consumo humano – 70% DESSA ÁGUA É USADA PARA IRRIGAR PLANTAÇÕES (USGS.gov | Science for a changing world). 53% da água doce mundial vai para trigo, arroz e algodão (Groundwater depletion embedded in international food trade | Nature)
Bem, é verdade que 113g de carne necessitam de 122 litros de água não-verde (HESS – The green, blue and grey water footprint of crops and derived crop products (copernicus.org), e arroz na mesma quantidade precisa de 90 litros, e pão precisa de 55 litros. Em compensação 94,5% da água usada para produzir amêndoas na Califórnia não é água verde, é água de irrigação (Water-indexed benefits and impacts of California almonds (waterfootprint.org), ou seja, 1097 litros de água doce para cada 113g de amêndoas, quase DEZ VEZES mais do que carne – pense nisso na próxima vez que pedir um café com leite de amêndoas
→ Lembre-se que a nutrição não funciona assim: “humanos precisam de 1 quilo de COMIDA por dia” ou seja, você não pode comparar 100g de carne com 100g de arroz. Carne usa um pouco mais de água potável, mas arroz tem 1/5 da proteína e muito menos vitaminas e minerais do que a carne. Sem contar as carnes de vísceras, que são ainda mais nutricionalmente densas.
→ Alega-se que os animais comem a comida que os humanos poderiam estar comendo: “para criar 1Kg de carne precisa de 25 Kg de grãos”
“poderíamos alimentar mais 3,5 bilhões de pessoas com a comida que damos para os animais”, diz-se por aí.
86% do que se fornece para a alimentação animal em peso seco são coisas que não são comestíveis por seres humanos (Livestock: On our plates or eating at our table? A new analysis of the feed/food debate – ScienceDirect)
Do que se oferece aos animais, 16% é comestível por humanos, mas a vasta maioria disso vai para aves e porcos (monogástricos); Já para ruminantes, a vasta maioria, 90%, não é comestível por humanos
Eles fazem UPCYCLING – uma mistura de “recycling” (reciclar materias primas) com “upgrade” (melhorar). Isso significa, por exemplo, transformar as espigas de milho, que iriam para o lixo, em carne e leite para alimentação humana, com uma densidade e valor nutricional que plnta nenhuma jamais terá.
– transformando em COMIDA coisas que normalmente seriam desperdiçadas, virariam lixo (e, detalhe, ao se oxidarem na natureza, virariam CO2 igual, mas sem alimentar humanos no processo).
Montes de subprodutos da agricultura deixam de virar lixo e podem ser transformados em carne por ruminantes (exemplo – casca de amêndoas, vagens abertas de soja, espigas e caules de aveia, etc); subprodutos industriais como espigas de milho, sementes de algodão, restos dos grãos usados para fazer cerveja;
Em média, para cada 100Kg de comida oriundos de colheitas, 37 Kg são restos não comestíveis (folhas, caules, espigas, etc). Nos EUA, estes animais transformam 43.2 bilhões de quilos de coisas que nós não conseguimos comer e transforma isso em carne, leite (Nutritional and greenhouse gas impacts of removing animals from US agriculture | PNAS).
Então não, não é verdade que precisa 25 Kg de grãos para fazer 1 Kg de carne; levando em conta que a maioria do que o gado come não é comestível por humanos, precisa-se de apenas 2,8 Kg de coisas comestíveis por humanos para fazer 1 Kg de carne (Livestock: On our plates or eating at our table? A new analysis of the feed/food debate – ScienceDirect) (isso se o animal não for totalmente criado a pasto – poderia ser zero). Para porcos e galinhas é 3,2 Kg para 1 Kg de carne. Se a preocupação for eficiência da cadeia produtiva de alimentos e impacto ecológico, portanto, a carne vermelha é a melhor opção.
→ A epidemia de obesidade não mostra que precisamos de mais CALORIAS em geral; animais podem transformar grãos ricos em calorias de carboidratos e pobres em nutrientes em uma fonte eficiente de proteínas, altamente densa do ponto de vista nutricional. ANIMAIS fornecem 48% das nossas proteínas, mas apenas 25% das nossas calorias.
→ Alegação: Ocupam terras que poderiam estar produzindo mais comida com agricultura “3/4 das terras produtivas do mundo são usadas para criação de animais”
Sem ruminantes, DOIS TERÇOS das terras produtoras de comida seriam desperdiçadas
No mundo todo, 2/3 da terra produtiva é terra MARGINAL (muitas pedras, muito inclinadas, o solo não é bom, não tem água suficiente). Nesses 2/3 , apenas ruminantes podem produzir comida. No 1/3 é possível plantar.
Assim, quando você escuta que a maioria da terra produtiva é ocupada por pastagens, é tecnicamente correto, mas o MOTIVO é porque você não pode plantar o que você quer onde você quer. Essas terras marginais estariam produzindo NADA se não fossem os ruminantes. Poderíamos chamar de agricultura de GRAMA. Locais onde apenas a grama cresce. E os ruminantes conseguem transformar a grama e comida humana.
Gado também fornece fertilizante para a produção de frutas e legumes: METADE de todos os fertilizantes utilizados no mundo para a produção de vegetais são esterco. E 100% dos fertilizantes de agricultura orgânica são esterco. Assim, embora o gado use um pouco dos grãos que poderiam ser consumidos por humanos, 50% dos fertilizantes necessários para produzir esses grãos vem da pecuária.
→ Alega-se que vacas produzem grande quantidade de gases estufa
Se a totalidade dos EUA virasse vegano, haveria uma redução estimada de apenas 2,6% nas emissões de gases (Nutritional and greenhouse gas impacts of removing animals from US agriculture | PNAS); se 10% virassem veganos, significaria 0,26% de redução – isso não é sequer mensurável. Segundo o Prof. Frank Mitloehner, qualquer coisa menor que 1% não é sequer mensurável, de tão pequena.
– 80% da emissões de pecuária são em países em desenvolvimento: se há preocupação com consequências ambientais, seria interessante investir no melhoramento da eficiência da ciração de animais nestes países.
Quando as pessoas sugerem substituir pecuária por lavoura, é preciso lembrar que a agricultura emite MAIS que a pecuária; Nos EUA, lavoura = 4,7% das emissões e pecuária 3,9% das emissões.
Vacas são responsáveis por apenas 2% das emissões (transporte: 28,5%, eletricidade: 28,4%, indústria:? 21,6%, emissões residenciais: 5,1%) (Sources of Greenhouse Gas Emissions | Greenhouse Gas (GHG) Emissions | US EPA)
18% da carne do mundo vem dos EUA com apenas 6% do rebanho mundial; EUA são DEZ VEZES mais eficientes na produção de laticínios do que a Índia, por exemplo (oportunidade de melhoras!).
Mas e o METANO? Sim, aquece mais que CO2;
Quando medido em equivalentes de CO2, nos EUA, o metano corresponde a apenas 10% dos gases estufa; desses 10%, apenas 27% são provenientes da fermentação intestinal (os famosos arrotos da vaca) – isso significa que apenas 2,7% do total de gases de efeito estufa é proveniente de todos os animais de criação (não apenas vacas).
Mas o mais importante é:
→ CICLO – metano (que vira CO2 em 10 a 12 anos) e CO2 de vacas vêm de um ciclo natural – fotossíntese, grama, vaca, gás – fotossíntese – não é carbono novo!! Diferente de combustíveis FÓSSEIS; ou seja, se você mantém o mesmo número de vacas, não há aquecimento ADICIONAL da atmosfera, diferente do que ocorre mantendo o mesmo número de CARROS por exemplo; nos últimos 20 anos, o número de cabeças de gado nos EUA tem permanecido o mesmo.
→ Não é nada novo – centenas de anos atrás, muito antes dos europeus chegarem na américa, havia 50 milhões de ruminantes da américa do norte, incluindo bisões, cervos e veados, que produziam 86% do metano que hoje o gado e todos os demais animais de fazenda produzem (Historic, pre-European settlement, and present-day contribution of wild ruminants to enteric methane emissions in the United States – PubMed (nih.gov)
→ enfatizar a pecuária quando se fala de emissões de gases de efeito estufa é, portanto, perder completamente de perspectiva o principal – transporte, geração de energia e indústria de cimento – estes três, sozinhos, correspondem a OITENTA % dos gases de efeito estufa (pecuária 4 a 5%).
Ou seja, dizer que o deixar de comer carne 1x por semana irá impactar a mudança climática é uma cortina de fumaça para não prestarmos atenção ao PRINCIPAL.
→ uma grande fonte de metano é o LIXO – comida desperdiçada.
Muito mais importante é o desperdício. 1/3 da comida é desperdiçada; a FAO afirma que se desperdício de comida fosse um país, seria o terceiro país depois da china e dos EUA em consumo de comida; Nos EUA, o desperdício é de 40%.
→ Outra coisa que não é calculada naquele estudo que calculou a redução da emissão de gases de efeito estufa se todos virassem veganos é o desperdício de comida. Por quê isso é importante?
Porque apenas 14% dos produtos de origem animal são desperdiçados – e a maior parte são as partes não comestíveis dos animais. 42% do lixo são frutas e vegetais, grãos cereais (incluindo pão) perfazem 22%, e raízes e tuberosas mais 18%, de forma que alimentos de origem vegetal correspondem a 82% dos alimentos desperdiçados;
Assim, embora a produção animal não seja perfeita, outro efeito colateral de abandonar o consumo de animais seria aumentar o desperdício de alimentos;
→ Não apenas produtos de origem animal são muito menos desperdiçados, mas também os animais podem ajudar a reduzir o problema: frutas e vegetais que as pessoas não querem mais comer podem ser consumidas pelos animais → upcycling!
Se realmente estamos preocupados com o meio ambiente, melhor do que “segunda sem carne” seria promover algo como “quarta-feira sem desperdício”.
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